A mentira nos números

Os números são a informação mais fiável que existe. Mas o contexto em que são apresentados pode alterar completamente a percepção dos mesmos. E o Marketing tem tendência a nos tentar iludir.

Os números são por vezes muito enganadores… e essa realidade não é esquecida pelos peritos de marketing, que os usam a seu favor.

Querem um exemplo?

Caviar… quantos consomem?

É caro, e é pouco consumido, pelo que um estudo ao seu consumo certamente mostraria que poucas pessoas o consomem regularmente.



Mas agora imaginemos que aparece a notícia no jornal:

Portugueses consomem uma tonelada de Caviar em apenas 2 dias

Naturalmente isto dava o que pensar. Os Portugueses agora andam com bastantes posses e como tal andam a consumir caviar, um produto não essencial, a torto e a direito.

A notícia poderá ser relevante para alguns! Para os fabricantes de Caviar na esperança de levar mais pessoas a comprar para experimentar aquilo que pelos vistos todos andam a comprar, ou até para um governo, ao passar uma imagem de que há certamente uma recuperação económica no País.

No entanto, se a informação for mais completa, a coisa pode mudar de figura, e a realidade destes números pode revelar-se bem diferente.

Imaginem agora que a notícia é desenvolvida e refere:

Uma conhecida marca de Caviar escolheu Portugal como País para uma campanha publicitária e de promoção do seu produto. Apesar de Portugal não ser um grande consumidor de Caviar, a companhia escolheu o nosso país exactamente pelo contraste, disponibilizando uma tonelada de Caviar que cedeu gratuitamente em vários pontos do País como medida publicitária, escoando o mesmo em dois dias. A campanha correu mundo e aumentou em muito as vendas da marca.

Um contexto bem diferente, certo? Há aqui uma realidade bem diferente da que é divulgada na primeira frase, onde o contexto, ao poder ser interpretado de forma diferente, dá uma ilusão de adesão ao produto que pode ser benéfica para o produtor!



Isto é basicamente descontextualização, uma tentativa de se passar uma imagem diferente da realidade global, com o intuito de promoção do produto.

Pois bem, naturalmente e como já imaginaram, que este artigo não vai falar de Caviar… vai falar de tecnologia ou videojogos, os assuntos desta página. Neste caso vamos falar de videojogos, mas esta analogia inicial era necessária para se perceber a importância do contexto numa afirmação.

Sabendo-se agora o contexto do artigo, fica a ressalva: o artigo não pretende de forma alguma retirar mérito ou negar a qualidade dos jogos aqui referidos, sendo que estes apenas são referidos por terem sido perfeitos exemplos de afirmações que os rodearam e que pretenderam usar os números para dar a entender um pouco ou até muito mais do que o que eles realmente mostram.

E ultimamente muito tem vindo a ser feito promovendo jogos usando como ferramenta promocional do sucesso o número de jogadores activos nos mesmos, dando a entender um nível de sucesso elevado e em alguns casos indo mais longe e retirando muita coisa do contexto apostando na confusão gerada para promoção. E citamos aqui alguns casos.

Caso 1 – H1z1 atingiu os 7 milhões de jogadores na PS4, tendo alcançado 1.5 milhões em 24 horas e 4.5 milhões em 3 dias



Fontes:

Fonte 1 – Link

Fonte2:

Números altos e impressionantes… sem dúvida!



Mas há aqui muita coisa que explica o sucesso do jogo e que tem de ser contextualizada face às realidades encontradas por outros jogos.

É que quando se fala que jogos como H1Z1 ou até Fortnite atingiram determinados valores de utilizadores dentro de uma plataforma, neste caso a PS4, convêm não esquecer duas coisas:

1 – São jogos gratuitos e free to play
2 – A base de utilizadores passível de ser alcançada na PS4 é de pelo menos 76 milhões.

Comparar isto, por exemplo, com os valores de jogadores de um Call of Duty ou um Battlefield na mesma plataforma, é bastante enganador. É que estes jogos não só são pagos, como são Full Price. Isso quer dizer que quem os quiser jogar tem de pagar 70 euros por eles, o que afasta as pessoas e reduz a base de utilizadores global que deixa de ser a totalidade dos possuidores da consola, passando a ser apenas aqueles que adquiriam o jogo, ao passo que estes jogos não tendo qualquer custo, podem facilmente ser testados por qualquer um.

É uma diferença que é tremenda. E que leva a que estes números de sucesso tenham de ser vistos com o devido cuidado, e acima de tudo enquadramento. Mas claro… as empresas usam-no como arma de marketing publicitando o jogo usando estes números para mostrarem umj sucesso elevado devido às adesões.



A questão agora é perguntar… e quantos o jogariam se tivessem de pagar 70 euros por ele?

É uma questão sem resposta! Mas certamente um número bastante menor,

Nesse aspecto, PUBG, mesmo tendo valores de adesão na Xbox mais baixos, os números apresentados acabam por ter mais valor. Isto porque o jogo não é gratuito, custando 30 euros, e a base de utilizadores que pode alcançar é igualmente menor, e de cerca de 35 milhões.  O facto de o jogo estar num estado lastimável, apesar de muitos patches, traz ainda mais valor a estes números, pois se as pessoas se sujeitam a pagar por um jogo nesse estado, ele é claramente bom. E há mais de 5 milhões de jogadores Xbox que o fazem.

A questão é que o Marketing é enganador, pois as condições não são exactamente as mesmas para todos. E mais triste ainda é quando se tenta tirar partido desses números enganadores para se promover um produto, tentando-o passar por melhor do que realmente é!

Caso 2 – Sea of Thives e o milhão de jogadores em 48 horas e 2 milhões numa semana.



Fontes:

Fonte 1 – Link

Fonte 2 – Link

As noticias que o jogo atingiu o milhão de jogadores em 48 horas e 2 milhões numa semana correram os cabeçalhos de diversos websites. São valores muito bons, que mostram uma elevada adesão ao jogo… mas!

Sea of Thieves foi o primeiro exclusivo Microsoft a ser disponibilizado simultâneamente no retalho, e no seu serviço pago, o Game Pass. E isso quer dizer que quem acedeu ao jogo foram não só as pessoas que o compraram, mas igualmente aqueles que, estando no game pass, e tendo acesso sem qualquer custo adicional ao jogo, o resolveram experimentar.



Essa é uma questão pertinente. Quantos utilizadores tem o serviço Game Pass? 1 milhão? 2? 3? 4?, 10? 20? Ninguem sabe! A Microsoft não diz!

Basicamente para quem está no Game Pass, o acesso a este jogo não é diferente do acesso gratuito de H1Z1. A realidade é que o jogo está disponível sem qualquer outro custo. Mas se o Game Pass tem 3 milhões de utilizadores e somente 2 jogaram o jogo, então jogo não interessou sequer ao ponto destes o resolverem experimentar. Se tem mais… ainda pior!

Já se tem menos… então todos poderão ter experimentado!

Seria interessante perceber-se exactamente de onde vieram os jogadores e em que percentagens.

A realidade é que apesar da imagem de sucesso, esta não terá sido tão grande como estes números divulgados querem fazer mostrar. E porque?



1 – Porque os números divulgados referem-se a jogadores activos. E o jogo saiu para a Xbox e PC, o que quer dizer que os dois milhões dizem respeito a ambas as plataformas.
2 – Porque segundo o VGChartz, as cópias vendidas a retalho no período de lançamento foram na ordem das 331 mil, e isto somando ambas as plataformas (Xbox e PC).
3 – Porque se veio a saber mais tarde que metade desses 2 milhões de jogadores vinham do uso do período experimental do Game Pass.

Mas a realidade é que a Microsoft tentou e bem aproveitar-se dos números para promover o jogo. E pior ainda, aproveitou-os para confundir tudo e todos, criando a confusão entre jogadores activos e cópias vendidas, dando a entender que os 2 milhões de jogadores não incluíam os que vinham do Game Pass, mas eram relativos a cópias vendidas no retalho.

A realidade é que, num Tweet da Games Industry que referia que o jogo tinha obtido uma população activa de 2 milhões de jogadores em uma semana, um representante da Microsoft, e não um representante qualquer, mas Aaron Greenberg, Director de Marketing da Xbox, num contexto completamente diferente e deturpado, responde referindo que Sea of Thieves era o IP First party com vendas mais rápidas desta geração. Eis o Tweet original e a resposta!

Aqui Aaron Greenberg muda completamente o contexto do que está a ser falado, abordando uma rapidez de vendas fora do Game Pass e não o número de jogadores, dando ilusoriamente a entender que os 2 milhões de jogadores advêm dessas vendas e não do Game Pass.



Um erro inocente? Claro que não! Não fosse esse senhor Director Geral de Marketing! Uma actividade que vive deste tipo de situações e que aproveita todos estes logros.

Qualquer um com dois dedos de testa percebe a confusão que aqui se gera, e como tal a situação foi propositada. E funcionou! E a prova é que muitos websites, alguns mesmo com alguma credibilidade, foram enrolados pelas afirmações fora do contexto, confundindo assim jogadores aderentes com vendas efectivas.

Eis um exemplo onde o website substitui o termo jogadores por vendas de cópias, dando a entender que o jogo estava a vender extraordinariamente bem.

E um outro exemplo mais claro, que mostra claramente ter vindo das palavras de Greenberg, e que refere que o jogo vendeu 2 milhões de cópias em uma semana, sem contar com o Game Pass. Basicamente um título que é uma transcrição dos Tweets da Games Industry e das palavras de resposta de Aaron Greenberg, onde o website é arrastado pela confusão criada, trocando os jogadores activos por vendas a retalho.

Este tipo de situação e erro, interessa claramente. Aliás ainda recentemente, com State of Decay 2 a Microsoft voltou ao mesmo e anunciou basicamente o mesmo feito, o atingir um milhão de jogadores numa semana, posteriormente complementado com o atingir os 2 milhões em menos de 2 semanas.



Mais uma vez a informação é incompleta e não refere quantos destes jogadores vem do Game Pass, quantos vem do retalho, quantos do PC e quantos estão no trial do Game Pass…

Basicamente no meio de tudo isto anda o consumidor, que tentam levar em paleio de Marketing, sem no entanto dizerem a verdade toda. É que estes valores de adesão basicamente perdem todo e qualquer interesse quando há um Game Pass metido no meio, com jogadores que acedem ao jogo para experimentar pelo simples facto de o poderem fazer sem qualquer custo. Nesse sentido será expectável que todos os futuros jogos disponibilizados nesse serviço tenham uma base de utilizadores elevada, não significando isso que o jogo esteja a ter grande sucesso ou sequer vendas, mas apenas que as pessoas o estão a experimentar por terem acesso “gratuito” a ele.

Basicamente, como em tudo na vida, não podemos simplesmente “comer o que nos dão”, especialmente quando há dinheiro envolvido. O marketing é e sempre foi muito enganador, e jogar com números é algo que o Marketing faz muito bem, especialmente ao retira-los do contexto, mesmo que apenas parcialmente.



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